Bertolt Brecht e o poema “Perguntas de um trabalhar que lê”: análise, alienação e ideologia

Compreender a História

A explicação de fatos da realidade exige uma compreensão do passado. Para o historiador Marc Bloch, só há real conhecimento do fato histórico quando se busca compreender as relações entre os homens, suas ações e suas significações.

No século XIX, surgiu uma corrente chamada “Nova História”, a qual defendeu a relevância de todos os atos humanos, com possibilidade de serem inseridos no processo histórico. Esta visão renega a visão tradicional e ainda dominante do entendimento acerca do que é História.

O escrito brechtiano faz-nos refletir acerca da função social duma obra escrita, estabelecendo relações entre História e Literatura, sem se esquecer do contexto histórico-social em que ela foi elaborada.

Tendo como origem o poema pode-se pensar numa forma de abordagem do ensino da História, ampliando os estudos literários, situando os receptores da proposta no presente.

Não podemos esquecer-nos que a História é tecida pela tradição oral, os costumes, os objetos e outros sinais que significam experiências humanas. Grupos sociais distantes das pesquisas historiográficas têm sido aproximados além do mundo acadêmico. O cotidiano tem ganhado destaque mergulhado num processo de transformações urbanas, produtivas e tecnológicas. Focaliza-se, sob esse aspecto, a diversidade de atuações de vozes com valores também históricos, não atentos apenas às grandes narrativas.

Ademais, o historiador encontra-se diante de um fato antepassado, muitas vezes de informações escassas e fragmentadas. A narrativa de um fato pode ser vista por vários pontos de vista, dependendo das fontes de que dispõe o historiador, da seleção feita, do enfoque que se deseja dar (político, cultural, econômico, por exemplo), das perguntas que o pesquisador fará a elas. Cabe a ele também participar da reconstrução da memória, exigindo-lhe uma crítica parcimoniosa.

Baseando-se na ótica marxista, o conteúdo histórico transmitido na sala de aula reproduz o discurso duma burguesia europeia, a fim de conquistar e manter seu poder. As experiências vividas dos seres subalternos às elites são preteridas.

A História instaura uma reflexão acerca do pensamento sobre o indivíduo, permitindo-lhe perceber como ser condicionador por estruturas existentes e também como agentes de transformação social.

Literatura/História

O texto ficcional possui também a força de relatar as reflexões emitidas em momentos pretéritos, em que o leitor recupera imagens, muitas vezes inverossímeis, mas capaz de ler acontecimentos constitutivos de uma realidade alimentadora da arte literária. O historiador, bem como um escritor, também inventa acontecimentos a seu modo.

O crítico Benedito Nunes reflete sobre literatura numa perspectiva histórica, atendo-se ao aspecto temporal, tanto para o acontecimento quanto para seu relato, da seguinte forma:

[…] narrar é contar uma história, e contar uma história é desenrolar a experiência humana do tempo. A narrativa ficcional pode fazê-lo alterando o tempo cronológico por intermédio das variações imaginativas que a estrutura auto-reflexiva de seu discurso lhe possibilita, dada a diferença entre o plano do enunciado e o plano da enunciação. A narrativa histórica desenrola-o por força da mímeses, em que implica a elaboração do tempo histórico, ligando o tempo natural ao cronológico. (NUNES, Benedito. 1988, p. 9-35)

Antonio Candido, em “Literatura e sociedade”, de 1967, atém-se à influência do meio social sobre a obra artística. As manifestações literárias encontram-se vinculadas ao contexto histórico da época em que é produzida. Não existe literatura sem história.

O escrito expõe a questão da alienação e da ideologia presente no processo de produção do conhecimento.

O autor acredita que um trabalhador que lê logra êxito ao indagar a realidade em que está inserido. “Ler” é conseguir interpretar o sentido dessa realidade. A alienação, no parâmetro marxista, é comum em sociedades divididas em classes, em que o fetiche pela mercadoria, dificulta ainda mais a compreensão ao trabalhador de que seu trabalho é a fonte de riqueza dessa sociedade baseada na circulação de mercadorias.

No livro “A ideologia alemã”, Marx e Engels assinalam que a ideologia é instrumento de dominação, ao mascararem a luta de classes através de valores, doutrinas e ensinamentos, a fim de que a classe submissa tenha suas ações obstruídas pela coerção física e pela interiorização de valores que parecem comum a toda sociedade, mas que só dizem respeito aos interesses da classe dominante.
Mister é saber quem participa da produção de fato, e ela é originada por uma força coletiva, transformada em propriedade privada. Essa ideologia é contraditória.

Na análise marxista da História são sujeitos reunidos em coletividades que a transformam. Líderes apenas expressam as aspirações de tais grupos, organizando suas ações. Para mudar a realidade, faz-se necessário ler seu significado e sentido, atuando de forma real no campo intelectual, tendo em vista que ações individuais questionadoras passem ser organizadas de modo grupal, expressando uma classe social.

A forma de Brecht tinha um institucional educativo a fim de suscitar uma espécie de consciência de classe entre os trabalhadores. Para o crítico alemão Jan Knopf, Brecht acreditava que somente os operários poderiam promover as mudanças sociais para uma sociedade igualitária. Para tal, os trabalhadores devem entender criticamente o mundo que querem modificar.

Uma crítica

O poema “Perguntas de um trabalhador que lê”, de 1935, assinala a que história oficial é unilateral (só mostra um lado do fato), e despreza as lutas sociais empreendidas pelas classes populares. O poeta ocupa um lugar de destaque na cultura ocidental. A forma poética é elaborada de forma simples, com mensagens claras, de fácil compreensão. O eu-lírico resgata o mundo da Babilônia, os valores clássicos e o conteúdo bíblico. Pelo poema, os grandes acontecimentos históricos apresentados de modo unilateral são apresentados de forma contínua geram questionamentos, a fim de convencer seu interlocutor. No texto formula-se uma crítica negativa à historiografia de cunho elitista.

Quem construiu a Tebas de sete portas?

Nos livros estão nomes de reis:

Arrastaram eles os blocos de pedra?

De pronto, o autor insinua que a ideologia, no sentido marxista da palavra, valoriza os detentores dos meios de produção, não obstante que nada ou pouco fazem. Aqueles que trabalham ficam com nada ou pouco de seu trabalho, pois esse produto é apropriado pelos seres da classe dominante. Tebas ficou marcada por ser uma cidade-estado aliada à Esparta. Era um local cercado por altas montanhas e que poderia ser defendida de forma antecipada. Está situada ao noroeste de Atenas. Cadmo, fundador, da cidade, tinha dois filhos: Anfion, músico e possuidor das sete cordas do deus Apolo, e Zetus, forte e capaz de carregar blocos de pedras para erguer novas colunas. Mitologicamente, Anfion tocava seu instrumento a fim de que as pedras o obedecesse na edificação das tais setes portas que seriam em homenagem a Apolo e a música.

Em que casas da Lima dourada moravam os construtores?

Para onde foram os pedreiros, na noite em que a Muralha da China ficou pronta?

Para construir a famosa Muralha da China acredita-se que foi empregada a força anônima de aproximadamente um milhão de pessoas, sendo que mais de duzentas mil pessoas morreram. Localizada ao norte, foi construída com focos militar e aduaneiro. Na verdade, compõe de diversas muralhas edificadas com diferentes materiais, como pedra, tijolo e madeira, durante várias dinastias na China Imperial.

E a Babilônia várias vezes destruída

Quem a reconstruiu tantas vezes?

A civilização da Babilônia foi existente do século XVIII ao VI a.C. Cidade da antiga Mesopotâmia, entre os rios Tigre e Eufrates. Hoje, situa-se nessa área o atual Iraque. Lá, o rei Hamurabi teceu seu famoso Código. Palco de disputa por vários povos antigos, foi várias vezes reconstruída. Para a mitologia, lá existiram os Jardins Suspensos e a Torre de Babel.

A grande Roma está cheia de arcos do triunfo:

Quem os ergueu?

Sobre quem triunfaram os Césares?

Em Roma há vários arcos triunfais. A construção deles teve início na República para destacar a vitória dos Generais. Destaca-se o de Constantino (315), edificado para comemorar a vitória desse Imperador sobre o usurpador Maxêncio, em 312. Esse reutilizou diversas esculturas provenientes de outros monumentos imperiais.

A decantada Bizâncio

Tinha somente palácios para os seus habitantes?

Cidade da Grécia Antiga, foi fundada em 658 a.C. tendo recebido esse nome para homenagear seu monarca Bizas. Tornou-se a capital da parte oriental do Império Romano. Denominada Constantinopla na Idade Média, foi conquistada pelos turcos em 1453. Situa-se no cruzamento entre os continentes Europeu e Asiático, permitindo o controle de rotas e da passagem entre os mares Negro e Mediterrâneo. Lá situa-se a Basílica de Santa Sofia, eminente obra arquitetônica. Desde 1930, chama-se Istambul.

Filipe da Espanha chorou,

quando sua Armada naufragou.

Ninguém mais chorou?

No excerto acima, o autor nega o culto ao individualismo, promotor do dom do indivíduo. Os náufragos, seus familiares e o povo de Espanha também comoveram-se com o evento, mas somente a narrativa real é trazida à luz.

A cada dez anos um grande Homem.

Quem pagava a conta?

Tantas histórias.

Tantas questões.

Ao fim, Brecht quer provocar as perguntas do operário, através de formas coloquiais.

Pelo texto, há uma série de encavalgamentos que ligam o essencial entre os diversos acontecimentos: a edificação da Muralha, dos arcos e dos palácios é vista como tendo sido feita pelos mesmos heróis anônimos.

A máquina humana trabalhadora constrói, cria e sofre, como uma “persona” de teatro. Ambos ficam por trás de suas feituras, como numa elaboração teatral.  Na obra artística, o ator/dramaturgo é visto como pessoa, lembrado por suas atuações. Já para os relatos da História tradicional, reis e empresários são mostrados como seres de grandes feitos, mas os trabalhadores, heróis e anônimos, ficam esquecidos. Será justo isso?